Implicações Éticas e Legais da Parceria entre Médicos e Farmácias de Manipulação: Uma Análise Crítica

Glauco Martins de Araujo¹, Fabio Nascimento da Silva Junior¹, Ismar Araujo de Moraes²

Publicado em: 20/08/2025

¹Graduando do Curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
²Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Farmacologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

 

Resumo

A relação entre médicos e farmácias de manipulação é um campo fértil para dilemas éticos e infrações legais, especialmente diante da crescente mercantilização que envolve a área da saúde. Uma interação comercial inadequada entre esses dois agentes pode comprometer a autonomia do paciente, a liberdade de prescrição e os princípios éticos fundamentais da prática médica. Um olhar crítico sob o ponto de vista do Código de Ética Médica (CEM), do Código de Defesa do Consumidor e do Código Penal, evidencia a necessidade de reconhecer a fronteira entre a indicação legítima, baseada em critérios técnicos, e os interesses financeiros, seja por captação de pacientes ou recebimento de valores. Nos propomos neste artigo analisar os aspectos éticos e legais em tais parcerias, permitindo aos profissionais e acadêmicos de medicina, assim como público leigo, conhecer os limites estabelecidos, e que garantem a prática de uma Medicina boa para todos. E chamar a atenção para uma  relação médico-farmácia que ocorra de forma lícita e ética, preservando a confiança e a saúde da população.

 

 Introdução

A medicina é, em sua essência, uma profissão dedicada ao cuidado da saúde humana, exercida com o objetivo primordial de beneficiar o paciente. Contudo, a crescente influência de fatores mercadológicos tem provocado tensões que desafiam seus princípios fundamentais. Uma das áreas mais sensíveis a essa pressão é a interface entre a prática médica e o setor farmacêutico, especialmente o de farmácias de manipulação. Não é incomum que médicos indiquem farmácias específicas para o aviamento de suas receitas. Embora a indicação, por si só, não seja vedada, desde que feita de maneira correta e dentro de preceitos éticos, ela se torna problemática quando se converte em uma parceria comercial. Tais acordos, muitas vezes velados, podem configurar uma perigosa mercantilização da medicina, onde a decisão terapêutica é influenciada por interesses financeiros em detrimento da necessidade do paciente. Neste artigo, propõe-se uma análise aprofundada das implicações éticas e, crucialmente, legais, decorrentes dessas parcerias. A discussão será conduzida à luz do Código de Ética Médica (CEM), do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e do Código Penal (CP), visando delinear as responsabilidades e os limites que devem nortear uma prática profissional íntegra.

 

Farmácias de Manipulação ou Farmácia Magistral

A Farmácia de Manipulação, ou Farmácia Magistral, é o estabelecimento de saúde onde medicamentos são preparados de forma personalizada para atender a uma prescrição específica, sendo uma atividade privativa do profissional farmacêutico. Conforme a Resolução nº 585/2013 do Conselho Federal de Farmácia (CFF), as atribuições clínicas do farmacêutico incluem o acompanhamento farmacoterapêutico, garantindo a segurança e a eficácia do tratamento (BRASIL, 2013).

Diferentemente da indústria, que produz em larga escala, a farmácia magistral permite ajustar doses, criar formulações sem excipientes que causem alergias e associar diferentes princípios ativos, representando uma ferramenta terapêutica valiosa. Essa capacidade de personalização impulsionou o setor no Brasil, que hoje representa uma parcela significativa do mercado farmacêutico.

É justamente essa relevância que acende o alerta para a necessidade de uma fiscalização rigorosa, não apenas dos processos técnicos, mas também das relações comerciais estabelecidas (BAHIA, 2021).

 

Aspectos Legais na Relação entre Médicos e Farmácias Magistrais

A relação médico-paciente é uma relação de consumo, e o paciente é a parte vulnerável. O direcionamento de receitas para uma farmácia específica, com base em um acordo comercial, pode configurar múltiplas práticas abusivas vedadas pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, conhecida como Código de Defesa do Consumidor ou  CDC (BRASIL, 1990). 

A prática que se evidencia é a venda casada, onde o médico condiciona, ainda que de forma sutil, a continuidade do tratamento ou a eficácia da prescrição à compra do medicamento em um estabelecimento parceiro. Isso cerceia a liberdade de escolha do consumidor, um de seus direitos básicos, previstos no artigo 6º, inciso II e III do CDC no capítulo dos Direitos Básicos do Consumidor.

            Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações.

III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem.

 

A indicação pode ser considerada publicidade abusiva se explorar a deficiência de julgamento do paciente, que confia plenamente na autoridade do médico para tomar a melhor decisão para sua saúde. Além disso, o médico que se utiliza de sua posição de poder e do desconhecimento técnico do paciente para obter vantagem manifestamente excessiva, como o comissionamento, incorre em infração prevista no artigo 39, inciso IV do CDC.

 Art. 39  É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;

 

O Código Penal brasileiro, ou lei penal brasileira publicada na forma de Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (BRASIL, 1940), determina a aplicação de suas normas aos crimes cometidos no território nacional, independentemente da nacionalidade do autor ou vítima. E no que se refere à relação de médicos com farmácias magistrais, havendo conduta danosa ao paciente pode, a depender da gravidade e da intenção dos agentes, ser tipificada no Código Penal como crime de estelionato, como se vê no artigo 171.

 Art. 171  Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa.

 

 Em um esquema de parceria, o artifício é a própria credibilidade do médico, usada para induzir o paciente a erro, levando-o a acreditar que aquela é a única ou melhor farmácia, gerando prejuízo ao pagar por um produto potencialmente mais caro ou inadequado e vantagem ilícita ao médico e à farmácia. Em um cenário mais grave, se a parceria envolver uma farmácia que, sabidamente, adultera, falsifica ou fornece medicamentos em desacordo com a receita para baratear custos e aumentar margens, a conduta pode ser enquadrada no gravíssimo crime do artigo 273 do Código Penal.

 Art. 273 Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou  medicinais: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.

 

O médico que conscientemente direciona pacientes para tal estabelecimento pode ser considerado partícipe ou coautor do delito. Se for comprovado que três ou mais pessoas, como um ou mais médicos e os proprietários da farmácia, se associaram de forma estável e permanente para o fim específico de cometer crimes, como estelionatos em série, podem responder também pelo crime de associação criminosa, previsto no artigo 288 do Código Penal (BRASIL, 1940):

 Art. 288  Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos

 

Aspectos Éticos na Prescrição de Medicamentos Magistrais

O Código de Ética Médica (CEM), publicado na forma do Anexo da Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018 (BRASIL, 2018), é o principal instrumento para balizar a conduta profissional. Especificamente os artigos 58, 59 e 68 do Capítulo VIII que trata da Remuneração Profissional, vedam expressamente a mercantilização da medicina. 

O artigo 58 do CEM citado indica que a busca do lucro como objetivo primário da profissão, deve ser vedada. Fica o entendimento que o recebimento de comissão por prescrição é uma materialização exata dessa prática. Veda ao médico o exercício mercantilista da Medicina, princípio fundamental que repudia a busca do lucro como objetivo primário da profissão (CEM, 2018, p. 33):

 É vedado ao médico:

Art. 58  O exercício mercantilista da medicina.

 

O artigo 59 do CEM, num mesmo ideal, proíbe oferecer ou aceitar remuneração ou vantagem por paciente encaminhado ou recebido, bem como por atendimentos não prestados. O comissionamento pago pela farmácia ao médico por cada receita enviada é, como se vê,  uma violação direta e literal deste artigo. Vale citar o conteúdo do artigo (CEM, 2018, p. 33):

  É vedado ao médico:

Art. 59  Oferecer ou aceitar remuneração ou vantagens por paciente encaminhado ou recebido, bem como por atendimentos não prestados.

 

Ademais, a materialização dessas infrações éticas pode ser observada em práticas de mercado nefastas, como a revelada em reportagem sobre um esquema no qual médicos recebiam comissões de até 30% do valor dos medicamentos que prescreviam em farmácias de manipulação parceiras (G1, 2010). E o artigo 68 do CEM é aquele que trata diretamente da vedação ao médico em  exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação, comercialização e manipulação de produtos de prescrição médica de qualquer natureza. Ele proíbe que  a prática médica seja condicionada por interesses comerciais, o que inclui ser sócio, receber pagamentos ou ter qualquer vínculo que crie uma dependência financeira ou comercial com a farmácia. O conteúdo do artigo  (CEM, 2018, p. 34):

 É vedado ao médico:

Art. 68  Exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação, promoção ou comercialização de produtos de prescrição médica, qualquer que seja sua natureza.

 

Pesquisas conduzidas pelo CREMESP revelam um cenário preocupante. A maior parte dos médicos paulistas admite ter recebido brindes ou benefícios de empresas farmacêuticas (93%), e uma parcela significativa reconhece prescrever de acordo com recomendações de representantes da indústria (SÃO PAULO, 2010).

Esse dado revela uma cultura profissional vulnerável à influência externa, que pode ser transferida para a relação com farmácias magistrais. Além disso, 74% dos médicos afirmaram ter tido contato com esse tipo de prática já durante a graduação, normalizando uma conduta que deveria ser eticamente problematizada desde o início da formação.

O estudo aliado à crítica social publicada no Jornal da Metrópole sobre os impactos econômicos e sociais de interesses mercantis na saúde, ressalta que a desigualdade de acesso ao tratamento é acentuada quando decisões médicas passam a ser orientadas por lucros em vez de necessidades clínicas (Jornal Metrópole, 2024). A saúde, nesse contexto, é reduzida a mercadoria, e o paciente a consumidor vulnerável. Tal conjuntura vai de encontro ao artigo 20 do CEM (CEM, 2018).

  É vedado ao médico:

Art. 20  Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade.

Art. 27 Desrespeitar a integridade física e mental do paciente ou utilizar-se de meio que possa alterar sua personalidade ou sua consciência em investigação policial ou de qualquer outra natureza.

 

Complementarmente, o estudo de Peres e Job (2010) destaca que estudantes de medicina, embora ainda em fase inicial da formação, reconhecem a influência da indústria farmacêutica na prescrição médica e manifestam preocupação ética com tais práticas. Esse dado reforça a importância de se discutir, desde a graduação, as sutilezas da atuação profissional e a necessidade de vigilância ética diante de pressões mercadológicas.

Essa constatação acende um sinal de alerta para as instituições formadoras. A falta de preparo para lidar com situações em que a ética e o mercado se confrontam pode levar o futuro médico a normalizar condutas que são, de fato, infrações disciplinares, civis e penais. Do ponto de vista do Código de Ética Médica, a formação ética do médico deve permitir que ele compreenda, por exemplo, que sua autonomia profissional não pode ser corrompida por interesses comerciais e que o compromisso primordial deve ser com a saúde do paciente; e que é vedado exercer a medicina com fins de lucro em prejuízo do paciente.

A infração de qualquer um dos artigos citados sujeita o médico a um Processo Ético-Profissional no Conselho Regional de Medicina, cujas penas podem variar de advertência à cassação do exercício profissional.

 

Conclusões

A análise integrada das esferas ética e legal demonstra que a parceria comercial entre médicos e farmácias de manipulação pode configurar uma prática inaceitável e perigosa. Ela pode não apenas violar os princípios mais caros da Medicina, como a autonomia profissional e o foco no bem-estar do paciente, mas também infringir direitos básicos do consumidor e  configurar crime.

A fronteira entre uma indicação técnica legítima e uma conduta ilícita é definida pela ausência total de vínculo comercial e pela garantia da liberdade de escolha do paciente. Qualquer vantagem, comissão ou benefício que o médico receba em troca do encaminhamento de receitas corrompe o ato médico e o transforma em uma mera transação comercial.

Cabe aos órgãos de fiscalização, como os Conselhos de Medicina, o Ministério Público e as agências de defesa do consumidor, agirem com rigor para coibir tais práticas. Aos médicos, recai o dever de zelar pela dignidade de sua profissão, e aos pacientes, o direito de exigir uma relação pautada pela transparência, confiança e, acima de tudo, pela ética.

  

Referências Bibliográficas

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CREMESP. Pesquisa: Médicos e indústria farmacêutica. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2010. Disponível em: <https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=1308>.  Acesso em: 25 jul. 2025.

G1. Esquema com farmácia garante a médicos 30% do que prescrevem. Globo.com, 12 abr. 2010. Disponível em: <https://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/04/esquema-com-farmacia-garante-medicos-30-do-que-prescrevem.html>. Acesso em: 25 jul. 2025.

JORNAL DA METRÓPOLE. Parcerias entre médicos e farmácias de manipulação estimulam prescrição de substâncias prejudiciais à saúde. Salvador, 22 nov. 2024. Disponível em: <https://www.metro1.com.br/noticias/jornal-da-metropole/158077,parcerias-entre-medicos-e-farmacias-de-manipulacao-estimulam-prescricao-de-substancias-prejudiciais-a-saude>  Acesso em: 25 jul. 2025.

PERES, G.; JOB, J. R. P. Estudantes de Medicina: Percepções Éticas. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 34, n. 4, p. 515-524, 2010.

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