Daniel Farias Lima Furtado1 e Ismar Araujo de Moraes2
1 Graduando do Curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
2 Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Farmacologia-UFF
Publicado em: 21/04/2025
A discussão sobre a violência obstétrica durante muitas décadas no Brasil e no mundo foi uma temática de pouca relevância, no entanto vem ganhando repercussão, por meio dos esforços de muitas mulheres que sofreram e denunciaram essa violência, juntamente com grupos de pesquisa e movimentos sociais que ajudam a denunciar esse fato lamentavelmente presente na realidade das parturientes brasileiras.
Vale considerar que definir violência obstétrica não é tarefa fácil, pois não existe um consenso principalmente quanto ao que deve ser considerado como violência, assim como em que momento pode ser considerada violência já que é amplo o campo da obstetrícia.
Quanto ao momento em que deve ser considerada como violência obstétrica, algumas visões encontradas na literatura são limitadas ao período do parto e pós-parto, ou seja, no momento da assistência direta à parturiente. Outras são amplas e incluem a ocorrência em qualquer momento da fase da gestação, parto e pós-parto.
Em um artigo publicado em 2015, a violência obstétrica foi definida como aquelas situações ocorridas em que possam ser observados: abuso fisíco (uso indevido de força ou restrição de movimento); abuso sexual; abuso verbal (ameaças, xingamentos e culpabilização das vítimas); estigma e discriminação; falha em atender aos padrões profissionais de cuidado (falta de consentimento, comunicação e confidencialidade da parturiente, bem como negligência e abandono); falha de relacionamento entre as mulheres e as profissionais e mesmo as condições e restrições do sistema se saúde como falta de recursos, política e cultura institucional (BOHREN e cols., 2015).
A Organização Mundial de Saúde declara em uma de suas publicações que a violência obstétrica inclui práticas violentas tais como: violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde, cuidado negligente durante o parto levando a complicações evitáveis e situações ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nascidos nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento(OMS, 2014).
A OMS (2014) reconhece o momento do parto como aquele no qual as mulheres ficam mais suscetíveis a esse tipo de violência e também aponta que há grupos de mulheres que sofrem mais com essa situação, sendo particularmente propensas a experimentar abusos, desrespeito e maus-tratos: as adolescentes, mulheres solteiras, mulheres de baixo nível sócio-econômico, de minorias étnicas, migrantes e as que vivem com HIV.
Sob o ponto de vista da legislação, não encontramos no cenário brasileiro, lei federal ou alguma regulamentação que defina o que que configura a violência obstétrica, ainda que evidentemente algumas práticas lesivas ou abusivas com gestantes ou parturientes, podem ser enquadradas como crimes comuns já previstos na legislação brasileira, a exemplo: lesão corporal e importunação sexual.
Uma boa iniciativa, de nível federal, a fim de combater a violência obstétrica no Brasil, foi a instituição da Rede Cegonha pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2011) buscando a transformação do atendimento obstétrico e extinguindo as práticas violentas. Também é louvável a tramitação de alguns projetos de leis nas casas legislativas federais tentando enfrentar essa problemática. A exemplo, o Projeto de Lei n° 2082, de 2022, que visa tipificar a violência obstétrica como crime e estabelecer medidas preventivas que a evite (BRASIL, 2022). E também o Projeto de Lei n.º 422, de 2023, que tem o objetivo de adicionar a violência obstétrica na Lei Maria da Penha (BRASIL, 2023).
Um bom avanço no aspecto legal pode ser observado no Distrito Federal que já possui a Lei nº 7.461, de 28 de Fevereiro de 2024 (DISTRITO FEDERAL, 2024) dispondo sobre as diretrizes para prevenir e combater a violência obstétrica em Brasília, com o objetivo de garantir que todas as mulheres tenham direito a uma uma gestação respeitosa e um parto digno. Esta Lei define assim a violência obstétrica como: qualquer ato praticado por profissional de saúde que cause constrangimento, dor, sofrimento físico ou psicológico à mulher no momento do parto ou do pré natal, incluindo a recusa de atendimento, a realização de procedimentos desnecessários, o uso excessivo de medicamentos, a não informação sobre os procedimentos realizados, entre outros.
Também o estado de Santa Catarina destaca-se neste cenário com a Lei nº 18.322, de 5 de janeiro de 2022 que consolida as leis estaduais que dispõem sobre “Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres”. Ela trata no seu capítulo V da implantação de medidas de informação e proteção à gestante e parturiente contra a violência obstétrica. A Lei define como violência obstétrica todo ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um familiar ou acompanhante. E apresenta um grande elenco de situações que passaram a ser consideradas crimes desde a sua publicação em 2022.
Não encontramos dados atuais acerca da casuística da violência obstétrica praticada no Brasil, mas uma pesquisa de opinião pública conduzida pela Fundação Perseu Abramo Junto ao SESC realizada em 2010 com entrevistas realizadas com mulheres brasileira e intitulada “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, demonstrou que 25% das mulheres entrevistadas haviam sofrido violência obstétrica no país (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO/SESC, 2010). Também, num estudo de base hospitalar com abrangência nacional, coordenado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca intitulado “Nascer no Brasil: Inquérito nacional sobre parto e Nascimento”, feita pela ENSP-Fiocruz, na qual entrevistou 23.894 mulheres, entre os anos de 2011 e 2012, foi demonstrado que 30% das mulheres atendidas no serviço privados sofreram algum tipo de violência obstétrica, enquanto que no SUS esse número chegou aos 45% (ENSP-FIOCRUZ, 2019).
Os principais atores envolvidos na violência obstétrica são naturalmente os profissionais de saúde, entre eles médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem envolvidos mais diretamente com a obstetrícia. No entanto, neste artigo buscaremos discutir os aspectos éticos, na hipótese de envolvimento de médicos, e que possa caracterizada prática de violência obstétrica, principalmente durante o parto, momento considerado como de maior vulnerabilidade das mulheres. E destacar, sob a ótica do seu código de ética (CFM, 2018), entendido como sendo de natureza impositiva e não facultativa para balizar a conduta profissional do profissional médico, as infrações que podem estar sendo cometidas e que são passíveis de punição pelos órgãos de fiscalização do Sistema CRM/CFM (Conselhos Regionais de Medicina/Conselho Federal de Medicina).
A Medicina Brasileira se pauta em princípios fundamentais previstos no Código de Ética Médica (CEM), anexo da Resolução 2.217, de 27 de setembro de 2018 (CFM, 2018), voltados para a proteção da sociedade que recorre aos serviços que envolvem os profissionais médicos. Assim, não podem os médicos envolverem-se em práticas que indiquem preconceitos de qualquer ordem para com as parturientes, independente do grupo social, etário ou étnico indicados como sendo mais propensos pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2014) citados anteriormente neste artigo. Dentre os princípios fundamentais da prática médica previstos no CEM a isonomia de tratamento se torna imperativa para a conduta do profissional, sob pena de cometimento de infração ética.
I – A medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza
Na Pesquisa da Fundação Perseu Abramo/SESC (2010) foram citadas pelas mulheres entrevistadas situações que entenderam como maus-tratos na hora do parto entre elas: sofrer exame de toque de forma dolorosa, negar ou não oferecer algum tipo de alívio para a sua dor e mesmo se negar a atendê-la. Neste aspecto o CEM é claro no seu Capítulo III que trata da Responsabilidade Profissional Médico como se vê.
É vedado ao médico:
Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.
Há ainda que ser considerado que ao médico ético cabe o aprimoramento contínuo e dar o melhor de si para o benefício do paciente e o bom nome da profissão medicina que escolheu, conforme esclarecido nos itens II e V do capítulo dos princípios fundamentais do seu Código de Ética, como se vê.
II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.
…
V – Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade.
A pesquisa citada também traz relatos de parturientes sobre atitudes de profissionais de saúde tais como: gritar, xingar e/ou humilhar. Além de frases tais como: “não chora não, que ano que vem você está aqui de novo”; “na hora de fazer não chorou/ não chamou a mamãe, por que está chorando agora?”; “se gritar eu paro agora o que eu estou fazendo, não vou te atender”; “se ficar gritando vai fazer mal pro seu neném, seu neném vai nascer surdo”. Tudo isso é reprovável como conduta daquelas que prestam auxílio ao parto, notadamente os médicos, que contam com um CEM que lhes obriga civilidade e respeito ao ser humano, como se vê.
É vedado ao médico:
Art. 23 – Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Nas pesquisas da Fundação Perseu Abramo/SESC (2010) e ENSP-FIOCRUZ (2019) foram relatadas pelas parturientes a falta de informação sobre os procedimentos a que seriam ou estariam sendo submetidas. Do ponto de vista da ética médica, se por médico isto for praticado, será caracterizado um tácito desrespeito ao seu Código de Ética. O capítulo IV do CEM trata dos direitos humanos, e nos artigos 22, 24, 31 e 34 fica claro que o médico, sob pena de cometimento de infração ética, não pode negligenciar as queixas da paciente ou deixar de informar às pacientes sobre quais procedimentos médicos elas passarão, e assim garantir o direito dela de consentir ou recusar determinados procedimentos. Observe a vedação.
É vedado ao médico:
Art. 22 – Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
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Art. 24 – Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.
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Art. 31 – Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
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Art. 34 – Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
Evidentemente deve ser salvaguardado o direito do médico em sua liberdade de escolher a melhor conduta para a tomada de decisão para a preservação da saúde igualmente previsto como princípio fundamental do código de ética Médica abaixo transcrito.
XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.
Conclusão:
A violência obstétrica deve ser vista como uma violação dos direitos humanos das mulheres e que pode ter consequências físicas, emocionais e psicológicas profundas para elas e seus bebês, contribuindo para o surgimento de traumas e mesmo depressão pós-parto.
Ela tende a se perpetuar na falta de debate e publicização sobre o tema, bem como se sustenta principalmente na falta de conhecimento das parturientes sobre a problemática, fazendo com que a ignorância as mantenha sempre na posição de vítimas. Além disso, pode estar ocorrendo a normalização e institucionalização de certas práticas nocivas a essas mulheres, nas quais passam despercebidas pelos médicos, que na maior parte dos casos não tem o intuito de lesá-las.
É importante que a população em geral, notadamente as parturientes e seus familiares, tenham ciência do direito à sua integridade física e emocional e que uma vez desrespeitado, cabe denunciar a violência sofrida inicialmente no próprio local em que sofreu a violência. Em seguida também na instância em que se vincula o estabelecimento de saúde, seja particular ou pública (Municipal, estadual, distrital ou federal). Os telefones 180 (número telefônico da Central de Atendimento à Mulher) ou 136 (Disque Saúde) quando oportunizados devem ser divulgados.
Importante também deixar claro que a participação de médicos em casos de violência obstétrica deve ser objeto de denúncias no Conselho Regional de Medicina, cabendo recolher todas as provas, mesmo as testemunhais, para embasar um procedimento administrativo contra o profissional envolvido, salvaguardado o amplo direito de defesa e o contraditório.
O bom médico deve sempre seguir os princípios éticos de sua profissão e na área de obstetrícia deve ter por norte a declaração da Organização Mundial de Saúde: “todas as mulheres têm o direito de receber o mais alto nível de assistência médica, o que inclui o direito a cuidados dignos e respeitosos durante a gravidez e o parto, e o direito de não sofrer violência nem discriminação”.
Por fim, para sensibilizar-se com a prática nefasta, os autores indicam assistir aos depoimentos de parturientes que sofreram a violência obstétrica no link https://www.youtube.com/watch?v=Q9G5uyRKsyk.
Referências bibliográficas:
BOHRE N, M. A. et al. The Mistreatment of Women during Childbirth in Health Facilities Globally: a Mixed-Methods Systematic Review. PLOS Medicine, v. 12, n. 6, p. e1001847, 30 jun. 2015. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC4488322/ Acesso em: 24 jan. 2025.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria GM/MS nº 1.459 de 24 de junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS – a Rede Cegonha. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html Acesso em: 12 fev. 2025.
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BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n.º 422, de 2023 (Deputada Laura Carneiro). Dispõe sobre a violência obstétrica, e sobre o dever dos diversos Poderes dos entes da Federação de promover políticas públicas integradas para a sua prevenção e repressão, alterando a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2253464&filename=Avulso%20PL%20422/2023 Acesso em 16 fev. 2025.
CFM. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1º nov. 2018. Seção 1, p. 1. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf Acesso em: 14 jan. 2025.
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