Robson Emilio Maia Júnior1  e Ismar Araujo de Moraes2 

Publicado em 31/03/2025

1 Graduando do Curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

2 Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Farmacologia-UFF

A medicina insere-se entre as nobres profissões consideradas essenciais no contexto da saúde única e essenciais para a preservação de melhoria da qualidade de vida das pessoas, impactando na promoção da saúde, trazendo alívio e esperança. Nesse contexto, a ética é o alicerce que sustenta a prática médica, guiando profissionais na tomada de decisões adequadas, justas e humanas, muitas vezes requerendo um exercício mental importante para agir frente às situações que o cotidiano traz na sua prática profissional.

Na atualidade, em um contexto nacional no qual a violência está cada vez mais presente, surgem cenários onde os profissionais médicos e agentes das forças de segurança precisam estar atentos para os limites de suas competências. Segundo nota publicada pelo Conselho Federal de Medicina, mais de 38 mil ocorrências policiais, entre 2023 e 2024, envolveram médicos em situação de trabalho.

Algumas situações requerem analisar os limites existentes entre a autoridade policial e a autonomia do médico na prática de sua profissão.

Recentemente um desses cenários foi trazido ao conhecimento público pela mídia do Portal G1 de Notícias (MELO, 2024), em um hospital no município de Trindade no estado de Goiás, no transcorrer de seu plantão, uma profissional médica em atendimento dentro de um consultório, foi surpreendida por agentes policiais exigindo que a mesma realizasse de imediato um exame de corpo de delito em um possível infrator sob custódia. Por estar em atendimento naquele momento, a doutora solicitou que os policiais aguardassem o término do atendimento já iniciado com outro paciente para então atender à solicitação. No entanto, os “agentes da lei” se mostraram inflexíveis, e exigiram prioridade para a realização do exame de corpo de delito.

Nesta ocorrência, após a médica questionar e informar sobre sua decisão de prosseguir com o atendimento já iniciado, segundo relato da reportagem, por meio de gritos e intimidações, inclusive com posicionamento da mão no coldre, os policiais deram ordem de prisão, com alegação de desacato à autoridade, e a conduziram a uma delegacia.

Diante desse relato, há de se pensar em alguns pontos: os policiais poderiam exigir que a médica realizasse o exame de corpo de delito, como foi imposto? Ou o ato caracterizou abuso de autoridade? Houve cometimento de infração ética pela médica ao não prestar atendimento imediato? Exame de corpo de delito se enquadra nos conceitos urgência ou emergência? Ademais, segundo os códigos de conduta de ambas as partes, quais deveriam ser os posicionamentos?

O Código de Processo Penal Brasileiro (BRASIL, 1941)  prevê no seu artigo 158 o exame de corpo de delito como essencial em circunstâncias de infração em que houver vestígios e define o seu artigo 159 que o exame deve ser feito por perito. Assim sendo, em se tratando de um hospital de atendimento clínico, não existe embasamento legal para exigir a realização de exame desta natureza, tampouco habilitação da profissional para que pudesse prestar o atendimento.

Art 158 “Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”Art. 159  “O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior.”.

O médico Yuri Franco Trunckle, especialista em medicina legal e perícia médica pelo Hospital das Clínicas da USP, em entrevista ao Portal UOL (TESTONI, 2024), diz que “Em relação a outros vestígios que estejam relacionados ou não ao crime, a análise é feita por peritos criminais no Instituto de Criminalística”, ou seja, num Instituto Médico Legal (IML).

No caso citado, foi informado existir um convênio para o atendimento, mas isso não prescinde da exigência de realização do exame somente por profissionais especializados em medicina legal ou criminalística forense detentores das competências necessárias. Assim, não sendo perita, a médica atendente agiu de modo correto, e se respeitada no seu fazer de médica, poderia realizar o atendimento mas restringindo-se a emitir documento com as informações somente relacionadas aos achados clínicos.

O Ministério da Saúde definiu na Portaria Nº 354, de 10 de março de 2014 (BRASIL, 2014) urgência como “Ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial à vida, cujo portador necessita de assistência médica imediata”, e emergência com o sendo a “Constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem sofrimento intenso ou risco iminente de morte, exigindo, portanto, tratamento médico imediato”. Contudo, fica evidente que um exame de corpo de delito não se enquadra nestas condições e exime qualquer médico do dever de prestar atendimento imediato ou imediato.

Sob o ponto de vista ético, a profissional médica agiu dentro das regras estabelecidas pelo seu Código de Ética, anexo da  Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018 (CFM, 2018) que  deixa claro nos incisos IV, VII e VIII do Capítulo dos Princípios Fundamentais que o profissional deve zelar pelas boas práticas da profissão, fazendo-o de modo autônomo e livre, com vista à eficiência e aos ditames de sua consciência.

IV – Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão;

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente;

VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

Do ponto de vista da ética médica, não houve nada que desabonasse a conduta da médica levada à delegacia pelos policiais goianos. No contexto em que estava inserida, não era médica perita em exercício naquela Unidade de Saúde, portanto não estava devidamente credenciada para esses fins, tinha garantida a sua autonomia e liberdade profissional para tomada de decisão livre no perfeito desempenho ético na profissão. Este mesmo entendimento foi expressado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) por meio de uma  Nota aos Médicos e à Sociedade  onde foi chamada a atenção para a expressiva quantidade de ocorrências policiais envolvendo médicos brasileiros, declarada a solidariedade com a médica agredida no seu fazer e exigidas  posturas adequadas das autoridades dos órgãos públicos envolvidos direta ou indiretamente no caso, notadamente no que prevê o  Código de Ética e Conduta Profissional do Servidor e da Alta Administração Pública Direta, Autárquica e Fundacional do Poder Executivo estadual (GOIAS, 2021).

Referências Bibliográficas

BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 354, de 10 de março de 2014. Pública a proposta de Projeto de Resolução “Boas Práticas para Organização e Funcionamento de Serviços de Urgência e Emergência”.  Brasília, 2014. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt0354_10_03_2014.html#:~:text=Publica%20a%20proposta%20de%20Projeto,Servi%C3%A7os%20de%20Urg%C3%AAncia%20e%20Emerg%C3%AAncia%22. Acesso em: 2. fev. 2025.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.  Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de Outubro de 1941. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro, 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm Acesso em: 16 fev.2025.

CFM. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1º nov. 2018. Seção 1, p. 1. Brasília, 2018. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf   Acesso em: 14 jan. 2025.

GOIÁS. Governo de Goiás. Casa Civil. Decreto nº 9837, de 23 de março de 2021. Institui o Código de Ética e Conduta Profissional do Servidor e da Alta Administração da administração pública direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo estadual. Goiânia, 2021. Disponível em: https://legisla.casacivil.go.gov.br/pesquisa_legislacao/103904/decreto-9837 Acesso em 2 fev, 2025.

MELO, Thauany. Médica que denunciou ter sido detida após policiais exigirem atendimento com prioridade diz que foi escoltada na frente de paciente e colegas:’Humilhante’. O Globo, Goiás, 21 nov. de 2024. Disponível em https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2024/11/21/medica-que-denunciou-ter-sido-detida-apos-policiais-exigirem-atendimento-com-prioridade-diz-que-foi-escoltada-na-frente-de-pacientes-e-colegas-humilhante. Acesso em 22 nov. de 2024.

TESTONI, Marcelo. Como é feito exame de corpo de delito em vítimas de agressão? VivaBem Uol. São Paulo, 01 de mai. de 2024. Disponível em https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2024/05/01/como-e-feito-exame-de-corpo-de-delito-em-vitimas-de-agressao.htm? Acesso em 27 de dezembro de 2024.

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