Cesar Coelho1 e Ismar Araújo de Moraes2
1 Graduando do Curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil
2 Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Farmacologia-UFF
No romance “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, o Dr. Jekyll, um médico dedicado e altruísta, cria uma poção capaz de dividir sua personalidade. Ao longo do dia, ele se transforma em um profissional acima da média e de uma bondade ímpar, mas ao cair da noite ele assume a figura de um monstro, o Mr. Hyde, entregue à corrupção e ao egoísmo. Por mais que seja uma ficção, essa obra se materializa como uma metáfora para a dualidade vivida na profissão médica, em que os interesses mercadológicos podem seduzir a conduta médica, comprometendo a ética da profissão e a saúde do paciente. Essa linha tênue entre o bem e o mal é visível em alguns estabelecimentos voltados para a oftalmologia na atualidade, onde a mercantilização da medicina ameaça desvirtuar os princípios fundamentais da ética médica que deveriam orientar o cuidado com o paciente.
Dados do censo de 2010 do IBGE apontam mais de 35 milhões de pessoas com alguma dificuldade visual no Brasil, o que revela alta demanda e susceptibilidade da oftalmologia aos interesses econômicos (MARTINS, 2023). Nesse sentido, o mercado de óticas, consultas oftalmológicas e até hospitais vêm por vezes se tornando um terreno fértil para práticas mercantilistas que transgridem a ética médica, o que ultrapassa a questão de conflitos de interesses e resvala sobre a integridade dos pacientes, também consumidores. A combinação do desejo de lucro de hospitais e óticas, o encaminhamento indireto de pacientes e uma fiscalização que não suporta a demanda elevada de fraudes são fatores que vêm tornando mais difícil garantir o comprimento dos princípios éticos. Sob tal perspectiva, essa análise tem como objetivo explorar infrações éticas e refletir sobre como elas se enquadram na legislação brasileira, visando a proteção dos pacientes ao abuso de poder.
Cabe chamar a atenção para a existência de um Código de Defesa do Consumidor- CDC (BRASIL, 1990) que proíbe no inciso I do seu artigo 39 as vinculações entre prestação de serviço e/ou vendas de produtos, mais conhecidas como “venda casada” .
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
(Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos.
Neste aspecto, diversas reportagens e relatos de casos na justiça apareceram na mídia ao longo dos anos, envolvendo estabelecimentos comerciais prestadores de serviços da área de oftalmologia, notadamente, clínicas, hospitais oftalmológicos e óticas. Essa prática tem várias facetas, mas basicamente é oferecido um desconto ou até mesmo isenções de custos caso a consulta médica e a compra do óculos sejam feitas vinculadas a alguma ótica. A justiça tem aplicado penalidades nos casos em que existe a comprovação do delito.
Em se tratando de médico envolvido na prática, além do cometimento de infração à lei do Código de Defesa, ele também comete infração prevista no seu Código de Ética, publicado como anexo da Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018 (CFM, 2018). Deve ser observado que entre os princípios fundamentais do fazer médico, estão os incisos II e IX, estabelecidos pelo Código de Ética Médica (CEM), indicando que o médico deve priorizar a saúde e a segurança do paciente acima de qualquer interesse financeiro.
II – o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano.
IX – A medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio.
A vedação de práticas mercantilistas pelos médicos, como se vê, também compareceu no Capítulo VIII do CEM, que trata da Remuneração Profissional, especificamente nos artigos 58 e 59,
É vedado ao médico:
Art. 58. O exercício mercantilista da medicina.
Art. 59. Oferecer ou aceitar remuneração ou vantagens por paciente encaminhado ou recebido, bem como por atendimentos não prestados
Mais especificamente no que se refere às práticas mercantilistas na área da oftalmologia, artigo 68 do CEM cita especificamente a necessidade da completa isenção do médico no que se refere às indústrias de óptica no ato da prescrição médica.
Art. 68. Exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação, promoção ou comercialização de produtos de prescrição médica, qualquer que seja sua natureza.
Em se tratando de ambiente hospitalar de oftalmologia, presume-se que exista um corpo médico responsável pela assistência aos clientes e um responsável ou diretor técnico pelo estabelecimento. Caso exista participação médica na prática de venda casada ou indução do cliente, e o fato seja de conhecimento do colega, cabe a ele seguir o que dispõe o inciso XVIII do Capítulo dos Princípios Fundamentais do CEM, respeitar o colega, mas não coadunar com os seus desvios éticos.
XVIII – O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados éticos.
Ademais, os artigos 50 e 57 do Capítulo da “Relação entre os médicos” traz a mesma orientação na forma de vedações.
É vedado ao médico:
Art. 50. Acobertar erro ou conduta antiética de médico
Art. 57. Deixar de denunciar atos que contrariem os postulados éticos à comissão de ética da instituição em que exerce seu
trabalho profissional e, se necessário, ao Conselho Regional de Medicina.
A motivação de dar luz a esta prática nociva do mercantilismo na área de oftalmologia veio da observação “in locu” em um dado Hospital Oftalmológico da cidade de São Paulo por um dos autores do artigo, que também encontrou vários relatos semelhantes em um conhecido site de reclamações aberto ao público brasileiro. Práticas tais como interceptação do cliente ou entrega da receita a um terceiro, aparentemente um profissional de saúde, mas na realidade um funcionário de ótica próxima ao hospital, seguida de coação ou indução de venda, foram observadas e/ou relatadas. Há relatos em que o paciente é induzido a acreditar que está sendo levado a uma outra ala hospitalar ou que foi indicação médica de urgência, mas terminam em um estabelecimento comercial (ótica), onde sofrem pressão psicológica para a compra dos óculos.
Não encontramos relatos de envolvimento direto de médicos na prática, mas entendemos a necessidade de alertar a todos sobre as ocorrências que caracterizam infração dos códigos civil e penal brasileiros, assim como do Código de Ética Médica a que cabe todo médico respeitar.
No que se refere ao comportamento médico, o órgão responsável pela fiscalização é o Conselho Regional de Medicina da circunscrição. A ele cabe, na defesa da sociedade que é a sua função, orientar os médicos e a sociedade em geral, para evitar maiores danos à saúde visual da população brasileira. Neste aspecto, o Conselho Regional do estado de São Paulo (CREMESP) se posicionou desde 1988 em um parecer da relatora e assessora jurídica a Dra. Adriana Turri quanto a indicação de ótica pelo oftalmologista: “cabe ao paciente e, somente a ele, a escolha da ótica que confeccionará seus óculos”. “Trata-se de uma deliberação pessoal, da qual o médico não participa, pois lhe compete apenas a prática do exame que possibilitará sua convicção sobre o diagnóstico e consequente prescrição.”
A fiscalização efetiva é sempre importante, pois resulta em processos administrativos, sanções, suspensões ou até a cassação do registro profissional de médicos infratores e favorece a boa e transparente relação médico paciente, sem riscos à sua saúde e segurança. É fundamental que os profissionais médicos estejam atentos às normas éticas e legais, cumprindo seu papel de zelar pela saúde e pela dignidade dos pacientes, conforme previsto no juramento médico.
Por fim, quando interesses financeiros se sobreporem às necessidades reais do paciente, a ética médica estará profundamente transgredida. E na comparação com a obra “O Médico e o Monstro”, o que vale é fazer prevalecer na prática médica atual a divisão clara entre o bem e o mal, não abrindo portas para o mercantilismo na Medicina, impedindo o avanço da maleficência em uma área exclusiva do cuidado e da saúde do ser humano, mantendo a Medicina como sempre, uma das mais nobres e respeitadas profissões no Brasil.
Referências bibliográficas:
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil.Subchefia para Assuntos Jurídicos. LEI Nº 8.078, DE 11 DE SETEMBRO DE 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm Acesso em 13 mar..2025
CFM. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1º nov. 2018. Seção 1, p. 1. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf Acesso em: 26.fev. 2025.
CREMESP. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Parecer n.º 14905. , São Paulo, 1988. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Pareceres&dif=s&ficha=1&id=4314&tipo=PARECER&orgao=Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Estado%20de%20S%E3o%20Paulo&numero=14905&situacao=&data=00-00-1988. Acesso em: 19 jan. 2025.
MARTINS, F. OMS alerta que 285 milhões de pessoas no mundo têm a visão prejudicada. Ministério da Saúde, 24 fev. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/fevereiro/oms-alerta-que-285-milhoes-de-pessoas-no-mundo-tem-a-visao-prejudicada. Acesso em: 19 jan. 2025.